Morte, solidão e outros monstros
Sobre um luto mal trabalhado, a importância de se reservar à solidão e dores mal-costuradas.
Ai você pensa assim: meu primeiro texto aqui e vai ser sobre esse assunto tétrico. Não, meus caros, não pensem que ele saiu assim todinho de uma vez. Foi um trabalho difícil olhar para esse pontinho escuro na minha cabeça e rever os fatos. E agora eu preciso colocar aqui pra fora minha análise dos porquês de algumas coisas.
Minha gatinha de 16 anos morreu há 2 meses, de um câncer no fígado. Enquanto eu remoía o luto, processava o tempo em que ela ficou ali, definhando, sem conseguir comer ou ir sozinha ao banheiro, pesando quase nada, chorando de dor sem que eu pudesse melhorar minimamente sua situação a não ser de forma paleativa, com pequenos cuidados. Eu não consegui assimilar nada. Eu apenas ia no embalo, tentava, errava, acertava, tinha esperança, perdia a esperança, tudo passou por cima da gente feito um trator. Foram meses de ver ela morrendo e sumindo em etapas.
Quando acabou, veio aquela tristeza profunda, com um misto de alívio por ver o sofrimento acabar. E quando eu contava para as pessoas, eu via no olhar de muitos a indagação do tipo - mas era só seu pet.
A verdade é que ela não era só meu pet. E não existe isso de só um pet. Muitas pessoas se privam de companhia humana porque tem experiências péssimas com outros humanos, ou a bateria social bem baixa, ou não aguentam interagir demais, ou até mesmo precisam ficar em períodos diários de solidão, e esse é exatamente o meu caso. Coisa que aprendi nos últimos tempos, até a me dar esse tempinho, pois minha profissão exige que eu interja por dias inteiros em 2 ou 3 períodos com um número grande de pessoas. A morte dela me fez perceber algo - ela era meu parzinho de solidão.
Por 8 anos eu morei sozinha, trabalhava o dia todo, chegava de noite em casa, falava com algumas pessoas pelo telefone ou internet, mas eu tinha esse tempo pra mim. Em que eu deitava na cama e acariciava as gatas, ela e a irmã (que também já foi), conversava com elas, cuidava, dava comida, escovava e dividia o sofá ou a cama depois. Mesmo tendo namorado, trabalho e amigos, ela que acompanhava as maiores crises, sem me julgar, sem interferir, apenas ali do lado sendo fofinha (que faz parte do trabalho deles, claro) e literalmente enxugando as lágrimas. Sem pedir nada em troca, sem exigências nem condições. Talvez por isso tenhamos tanto amor pelos animais de estimação, é o espaço onde você cuida e é cuidado, não há exigências pessoais, negociações de qualquer tipo ou julgamentos. Em um mundo onde os humanos estão sempre exigindo e julgando, os pets simplesmente te aceitam como você é. Sim, os gatos julgam (aquele olhar inegável), mas jamais condenam.
E depois de tanto tempo isolada eu percebi que sentia falta desse espaço meu, com eles, em casa, quietinha, desenhando, lendo, meditando, fazendo yoga, fazendo nada. Por que eu preciso de tempo pra processar as coisas (tipo esse post todo aqui, prova viva disso). Essa solidão me é necessária. E meus bichos sempre estiveram como apoio nestas horas.
Meu maior medo quando adolescente era ficar sozinha. Eu não dava conta do que passava na minha cabeça e precisava dividir tudo o tempo todo. Hoje eu olho pra trás e penso que eu nunca soube lidar com a solidão necessária naquela época, como sei agora. Pessoas que gostam de arte, pintura, desenho, são introspectivas no geral, pra poder pensar e produzir, e eu perdi totalmente isso. Coisas do tipo: oba, 2 horas, posso fazer um desenho, ou ler um livro. Sim, os seres humanos são sociais por excelência, eu sei disso e não sou absolutamente anti-social, mas acho que todos esses novos tempos me deram uma overdose tão grande de socialização - inclusive por redes sociais - que eu passei a falar não para convites, evitar sair de final de semana para poder descansar (mal ae, amigos, mas é verdade), ou priorizar coisas que posso fazer no meu tempo livre, cuidar da minha casa, dos meus gatos, da minha filha, ouvir música. Eu passei a amar ainda mais o meu ambiente particular, minha mini bolha caseira. E meus pets sempre farão e sempre fizeram parte dessa bolha. Quando um vai embora, é um pedaço dessa história que ele participou, que foi junto também.
E quando pessoas e bichos e épocas e partes da nossa história morrem, ah, a gente morre um pouco junto, também. Não são dores equivalentes, mas são dores que pegam a gente bem feio, mesmo. É pesado. É custoso pra gente se entender sem aquele pedaço da nossa história de novo.
Tem uma pergunta que eu sempre me fazia quando viajava sozinha para um lugar distante - e se eu pegar uma esquina, ali, e sumir? Será que alguém vai dar falta? Todo dia tinha essa questão. Assim como as pessoas que me tem algum apreço, eu sei que minha gata ia dar falta, com certeza, eu sei que sempre tinha festinha quando eu chegava em casa, eu sei do carinho que ela tinha por mim. Irracional? Interesseiro?Provavelmente. Mas ela estava sempre ali, e agora não existe mais. Eu não tenho mais essa troca. E isso é o que dói mais.
Enfim. Pra quem não queria falar de coisas pessoais, acho que esse foi um post de fracasso completo, mas é isso mesmo, gente, bem-vindos à incoerência humana, errare humanum est, etc etc etc.
Deixo um beijo pra todo mundo que já perdeu uma costura e um pedaço da sua história por aí e ainda sente essa dorzinha onde falta linha e agulha para costurar de novo.
Obrigada por esse texto. Meu passarinho de quase 5 anos se foi há 10 dias. Me pergunto diariamente o porquê tive tão pouco tempo com ele. O bichinho fez meu TCC comigo, encaramos a pandemia e me viu entrar no meu trabalho dos sonhos. Agora, um vazio...
é uma dor imensa, a de perder um bichinho e de ver vazios os lugares que eles ocupavam. eu não poderia trabalhar de forma pior meu luto, ainda hoje não consegui escrever sobre a história do igor (e que foi você quem o encontrou pra mim, nunca esqueço). praticamente não consigo ver fotos dele e nem pensar nele sem chorar muito e muito. foi tudo muito doloroso no final. é bem dificil explicar esse amor e essa saudade toda. muita força pra você e um beijo <3